O ELEVADOR
O ELEVADOR
A minha função não é proteger, a minha função é matar. Vivo
no meio de humanos, me disfarço como um deles, pego ônibus, enfrento fila, vejo
novela, tudo isso só pra disfarçar e aprender mais sobre a raça. Quando alguém
não aguenta mais isso aqui, eu vou lar e faço o serviço, a coisa ta preta, eu
acho. Deve ser complicado ser humano. Às vezes é difícil para mim, que sou
outra coisa, Imagina pra ele! Por isso as vezes eu abro as asas só por terapia
para não esquecer quem eu sou.
Eu sou procurado por muita gente, seria melhor eu dizer sou
procurado, e ponto. Outros seres também me procuram, geralmente é quem não tem
coragem suficiente de cometer suicídio, as vezes até demônio desgarrados que
atravessaram a barreira da realidade e não conseguem voltar e já se cansaram de
migrar de um corpo pra outro. Até porque, TEM corpo que é nojento vamos
concordar. Hoje uma senhora me empurrou na fila do caixa do supermercado, eu
olhei pra ela como uma pessoa de carne e osso faria, analisando aquela anomalia
na minha frente tentando não a chamar pelo nome de um mamífero marinho.
Quando sou requisitado por uma pessoa cem por cento humana,
no meu mundo as vezes tenho dificuldade de diferenciar, faço um exame
preliminar atestando se não tem nenhum espirito chifrudo dentro dela nem sei
porque eles gostam de se mostrarem assim, mas já que eu estudo na faculdade
humana faço uso do que ouço por ai: gosto não se discute. Nesse caso deixo o
sujeito ou sujeita inconsciente, eu bato bem no cocuruto por trás da cabeça, a
criatura apaga e acorda no hospital, depois de um pesadelo provocado no
inferno, a maioria verte lagrimas e reconsidera a posição.
Eu sou um anjo é, essa é a minha maneira de fazer o bem, eu
sempre procuro salvar as pessoas de irem para o andar de baixo. Hoje mesmo vai
ser um dia típico, vou executar um ser, em uma construção abandonada da
prefeitura. Tudo indica pela estrutura do prédio que aqui iria funcionar um
mercado de carne. Será que sou um açougueiro de deus? Anjos não dormem, mas como eu moro sozinho,
consigo disfarçar bem, na maioria das vezes, fico vendo tv, assistindo filmes.
Essa farsa de imagens que eles chamam cinema é um método de ensino verdadeiro,
acho que foi em um filme do Robert D Niro que vi no corujão que me deu a ideia
do meu ato supremo, apesar de portar uma espada, eu não sou samurai, nem
conheço o Japão, os humanos dizem que o sol nasce lá, maneira figurada de
dizer, eu adoro esses humanos e as linguagens que eles inventam, não sei por
que complicam tanto a vida.
Mas como eu disse foi no filme que notei algo interessante,
um suicídio coletivo de um bando de samurais encurralados pelo exército
inimigo. Depois disso eu até pesquisei no golpe o nome dessa técnica, ritual,
sei lá como classificar isso, só sei que é um gesto extremo e ele calhava bem pra
mim agora. Nunca descobri por que as pessoas se tornam carrascas, e olha que
sou curioso, mas talvez não tenha pesquisado o suficiente, fico me perguntando
quais foram as curvas do destino que leva uma pessoa a tal destino, fico
pensando naqueles carrascos medievais dos filmes, nas decapitações da revolução
francesa, quem foi o gênio que inventou a guilhotina? sob o capuz existia um
ser humano mais todo mundo esquece disso, até ele mesmo e se torna um autômato
sem piedade. Me pergunto quem está por trás da minha armadura, quando eu coloco
meu capacete de batalha, quando eu desço a lamina no pescoço dos outro sem dor
nem piedade, mesmo com o consentimento deles, eu deveria hesitar um pouco, essa
maldita humanidade que entrou em mim, como se fosse uma possessão que faz agora
eu ponderar essas coisas, isso me incomoda mais do que um pesadelo, por isso
resolvi não erguer mais a lamina, vou pendurar as chuteiras como dizem aqui no
brasil, eu vou me matar, irônico eu sei, mais procurei outro açougueiro que nem
eu pra fazer o serviço. Ele é legal, disse que geralmente não faz isso, mas
disse que vai abrir uma exceção pra mim, quando ia subindo a escadaria esbarrei
com um demônio descendo do apartamento do meu contato, ele andava disfarçado de
humano, a gente ficou se encarando por um tempo, saquei minha espada num gesto
instintivo de casta guerreira, mas ela não funcionou, isso era um gesto
pejorativo dos humanos, prova que eu soube me infiltrar muito bem, me enfiei direitinho
bem no meio dos macacos. Do alto da escada nosso anfitrião disse que ali era um
terreno neutro, os poderes de ambos não iriam funcionar, o demônio com jeito de
duas caras arreganhou um sorriso irônico quando passou por mim.
__ Pena que você não tem uma alma humana, alfinetou, iriamos
fazer uma festa com seu suicídio lá embaixo.
__ Me faça essa pergunta mais tarde, chegando mais perto o
suficiente, rebati. Ele não disse mais nada deu as costas e saiu. Era estranho
uma ruina daquela, com pichações de genitálias pelas paredes, pontos de
infiltração e cupins na madeira ter um campo de força tão intenso.
__ O que ele estava fazendo aqui? não resisti e perguntei
__ Eu pratico ressureições também. Foi a resposta seca.
__De que lado você está? estou
__ Você vai querer o serviço ou não?
__ você ta certo. Eu disse me rendendo, estou cansado dessa
guerra entre o ceu e o inferno, eu só quero chegar ao fim da minha existência
terrena.
Me deito no sarcófago, parece uma maca de tão raso, fito um
espelho embutido no teto, logo acima de mim.
__ É por ai que minha essência vai ascender ao paraíso?
__ É sim, O maior barato não acha? ele falou com um ar de
indisfarçável irritação.
Quando fico imobilizado, pelas ataduras nos pês e nas mãos,
olho de lado e vejo a porta de um elevador e quero brincar.
__ Você é chique tem um elevador dentro do
quarto.
E ele tentando enterreirar um punhal de cristal rapidamente
no meu peito, fala:
__ E olha que estranho ele não sobe, só desce!
Nessa fração de segundo percebo ser um erro minha decisão. O
filho da puta quer me mandar com corpo e tudo, de armadura, direto pro inferno
através daquele portal disfarçado de elevador, só pra mim servir de chacota lá
embaixo, olho novamente pro elevador a porta se abre, pega fogo lá dentro, como
se fosse uma fornalha, eu não vou, minha mão encedeia a atadura e consigo interromper
a trajetória da lamina segurando o pulso dele, mais ainda luto pela vida, sou
lambido por sua língua úmida de serpente.
__ Bem-vindo ao inferno! ele diz.
__Va você, minhas asas brotam das costas me soltando de vez
da maca, minha vontade de lutar voltou novamente, parece que tanto homens,
quanto celestiais quando se sentem encurralados só pensam em uma coisa:
sobreviver.
Aquele demônio camuflado ficou surpreso e agora pendurado em
mim rodopia no ar por causa do meu vou mas não vou gastar o fio da minha lamina
com ele. Agora sou eu que pego no pulso dele, torço até soltar o punhal e bato
o corpo dele no que encontro pela frente, teto parede, piso armário, começa
cair sedimentos de cima até que atiro ele no chão, gemendo de dor, ele ainda
consegue se levantar, mas até seu se erguer é um lamento de osso quebrado e
cuspe de sangue, ele abre os braços em gesto de insanidade, pobre diabo, é
muito fraco pra me enfrentar, sua única arma era a mentira.
__Bem vindo ao inferno, só o que consegue dizer, com os
dentes quebrados e o sorriso vermelho.
Ele está de frente pro elevador de portas abertas, eu ainda
consigo deter meu impulso de usar a espada, a coloco em cima de uma mesa,
suprimo a armadura do meu corpo, eu não preciso dela para acabar com ele, vou
terminar a luta com aparência de um ser humano, agora eu vejo foi com eles que
eu aprendi a ser forte, e sair do fundo do poço, mesmo depois da mais profunda
tristeza, então esse sou eu de calça jeans e camisa polo.
__ vá você! A última coisa que ele sente é o impacto do meu sapa
tênis bem eu seu tórax atrofiado, ele cospe uma golfada de sangue antes de ser
lançado para dentro do fogo e a porta do elevador se fecha. Eu brinco:
__Descendo! Em todos os momentos é bom bancar um humano, mas
ter essa reação muscular e psicológica de ficar sorrindo sozinho, parecendo um
maluco, e inigualável.
Desço as escadarias do prédio (nem pensar em pegar o
elevador), e parece que cada espectro de sombra presente em um usuário de crack
que se abriga naquele lugar, treme ante minha passagem.
__Não se preocupem, respondo em pensamento, brinco com vocês
depois. Passo e vou embora.
Dias depois ligo pro meu agente superior, também disfarçado
de humano em algum lugar do planeta.
__ Quero mudar de posto, quero ser um anjo da guarda.
__Você tem certeza ?
Eu encaro o noticiário da tv instalada em meu quarto, o
garotinho acaba de ser morto por uma bala perdida no rio de janeiro.
__ Tenho sim.
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