SEGUNDA CHANCE
Porcos! Ela sempre teve nojo deles! Talvez por isso o castigo fosse pior ainda.
A porca continuava naquela corrida desenfreada pelas ruas da cidade de Altos, disposta a devorar qualquer pessoa ou animal que aparece-se pela frente. Os moradores já haviam até se habituado com os ataques, por isso tomava precauções quando saiam a noite principalmente em sexta feiras e noites de lua cheia, eles voltavam pra casa antes da meia-noite.
Naquela noite porem, havia algo diferente com nurica, era como se a sua transformação não tivesse sido motivada apenas por sua índole malévola e vingativa. Tinha acabado de chegar de mais uma novena dos festejos de são José dos altos. Era a noite do apostolado, e a maioria do seu grupo compareceu em peso na novena para mostrarem seu peso entre os outros grupos e pastorais da paroquia, principalmente durante os festejos, na novena e durante os leilões.
Todos a viram no meio daquele exército azul de escapulários pendurados em fitas vermelhas. Ela sabia que era notada de um jeito diferente pelas pessoas, havia rumores sobre ela, mas frente a frente ninguém dizia nada, coisa de cidade pequena. Como não sofrera de nenhuma objeção direta, continuava a frequentar a missa, Elas barravam as transformações, pelo menos por um tempo. Mas a outra criatura sempre voltava pra assumir o posto, meu deus! era terrível, era uma epilepsia infernal, caia no chão, se tremendo toda, uma dor de barriga insuportável, o intestino humano se transformava em um órgão suíno, sentia-se pequena, peluda e gorducha no chão do quarto com a visão opaca, o nariz tinha crescido e se tornado arredondado, as presas suínas tinham crescido antes, rasgando a pele humana, sentiu o órgão sexual de porca brotando atrás, aquilo era nojento. O pior era correr por horas, durante várias noites em cima dos joelhos e cotovelos, sentia o atrito do asfalto, dos bicos de pedra em calçamentos mal acabados, piçarras e areia. Sempre acordava sangrando nos joelhos e cotovelos, nunca lembrava o que tinha feito quando estava transformada, fazia apenas uma ideia pelas evidencias e marcas no seu corpo de senhora, sempre havia uma possa de sangue e vômitos debaixo de si, quando voltava da caçada. Botava pra fora tudo que tinha comido: Pintos novos, filhotes de cachorro, e gatos, etc.A sede que sentia depois do retorno era grande, havia sempre uma bacia de alumínio com agua, preparada dentro do quarto e uma roupa extra para substituir, rasgada durante a mudança de corpo. É Todos a tinham visto no festejo, mas nem todos mundo percebeu quando o padre Josino a chamou para uma conversa particular e arrancou o escapulário do seu pescoço dizendo que ela não era poderia mais usá-lo. Ele não tinha noção do que acabara de fazer. Naquele momento ela sentiu como se tivessem tirado uma coleira inibidora dela. E o demônio sussurrasse em seu ouvido “agora você está livre” “toda minha “Pega ele! Pega todo mundo! Quem pensa que ele é? Pecador! Pecador que nem a gente! E agora quer ser santo, que nem o outro, ele também errou, mentiu dizendo que amava a gente, uma pessoa tão boa, pessoa de família, depois foi embora. Aquela voz a deixava tonta, lembrou apenas que depois da fala do padre, passou mal, alguns coroinhas ainda com as túnicas, tentaram ajudar.
__a senhora quer um copo com agua?
__Sente u pouco nessa cadeira!
Ela apenas os escorraçou com a voz irritada:__Me deixem em paz, eu quero ir embora, eles se assustaram, desfizeram aquele circo de curiosidade, ela abriu caminho entre eles e saiu pela porta da sacristia.
Ela corria agora, os pelos eriçados pela garoa que caia agora, mas a chuva pesada tinha minguado, mas deixou aas ruas cheias de lama e entulho que procuravam uma descida para escoar pelo meio-fio do calçamento, mas em alguns pontos das ruas do centro da cidade, algumas poças de lama insistiam em ficar e onde só era piçarra o atoleiro era maior. A corrida da porca parou na encruzilhada da Av Francisco Raulino com aruá da feira dos bichos. Ela sentia-se estranha, como uma marionete nas mãos do inferno, afinal o que o céu iria querer com ela? Sua alma já estava condenada.
Ela estacou e parou. Farejou o ar como um lobo, mas alguém iria chegar, mas não tinha sido ela que marcou o encontro. Ficou escondida em um caixote de madeira, na penumbra, a chuva que cairá antes afastou as vendedoras de comida que usavam aquele trecho de rua para cozinhar e faturar algum dinheiro com notívagos que voltavam das festas e caminhoneiros que cruzavam a cidade através da BR 343 rumo ao litoral, conduzindo veículos de grande porte, um caminhão passou direto na avenida arremessando agua do asfalto para as laterais da pista e uma criatura peluda de olhos cor de fogo, saltou da carroceria do caminhão para o beco, aparentando sinais de cansaço, era um lobsomen.Ambos agora sentiam a presença um do outro e por um instante voltaram a serem humanos novamente.
__Eu sei que você está ai nurica, de cabeça baixa, apoiada sob os cotovelos, falou o homem exausto. Eles já se conheciam de longa data, já tinham se enfrentado antes, disputando território, um duelo sem vencedores. Mas agora alguma coisa os impedia de se engalfinharem e não entendiam o porquê de já passar da meia-noite e ainda estarem em ação. Em outras ocasiões teriam de ter voltado para casa antes da meia-noite com uma tropa de cães em seus calcanhares. Eram dois desgraçados, ela por ter namorado um padre, e ele por ter tido um caso com a comadre. A diferença era que ele estava preso em um circuito de visitar sete cemitérios por noite, o que aliás tinha acabado de fazer antes de ouvir o chamado, estava no cemitério do bom gosto quando foi impelido por uma força misteriosa a voltar pra cidade de altos pegando a BR 343 próximo a comunidade vista alegre. Acabou perseguindo um caminhão por puro instinto, correndo com a mesma velocidade, mas quando emparelhou com a boleia e botou a mão no vidro para quebra-lo, o motorista sacou uma arma e disparou várias vezes, alvejando sua mão, e quando ele caiu na pista rolando para trás, o condutor do veículo jogou a rabeira do caminhão truncado pra cima dele, com o impacto ele foi lançado pra fora do asfalto, aquele combate repentino iria render para o corpo humano dele várias escoriações,  além dos dedos da mão decepados por uma bala, estava ferido e sangrando, amaldiçoando o preparo do motorista, quando o tecido da realidade se rasgou bem no ponto central da encruzilhada das ruas e um ser magnifico e  brilhante  apareceu com uma armadura dourada, capa vermelha e espada de fogo na mão. Era um anjo, O ser celestial olhou para os lados, fazendo pouco caso dos presentes.
__Não sei por que me mandam pra esse tipo de buraco.
__Seu vocabulário e muito mundano para um anjo, falou a velha de quatro, ainda com o corpo enquencrilhado e cheio de atrofias.
__Como ousa me dirigir a palavra, criatura medonha? Disse o anjo encarando-os pela primeira vez. Estava enojado de ter se materializado perto de seres tão pecadores, criaturas que tinham cometido falhas terríveis durante a vida material, pois agora estavam mortas e nem sabiam. Mas no fundo ele sabia que era um soldado de deus em missão tinha de ser cumprida, além do mais as vibrações místicas das orações realizadas nos festejos tinham ajudado o celestial na materialização, sentia-se forte perto daquele santuário, apesar de saber que ao entrar nesse mundo, sempre sentiria a presença do mal.
Ele sacou a espada e apontou para a frente e para baixo como se fosse uma seta, fazendo mira nas pedras do calçamento.
__Ora! vamos logo com isso, levante e apareça! Apareça! Bradou tão alto que alguns morcegos voaram assustados, deixando seus esconderijos entre as telhas de alguns pontos comerciais nas laterais da rua. A porca e o lobo achando que a ordem era para ele e que o movimento que o anjo fazia era parte de algum ritual se aproximaram curvados ficando próximos da ponta da lamina. E o anjo continuou dizendo:
__levante, levante!
Os dois se entreolharam, não estavam entendendo nada. O homem lobo ousou falar. __Apesar de nossa vergonha, já estamos de pé, senhor.
__Quieto, ralhou o anjo. A espada oscilava seu brilho em ondulações circulares ao redor da lamina. A energia foi se concentrando na ponta que apontava para o solo. Até que um raio partiu da lamina penetrando no chão da rua, entre as pedras do calçamento. O anjo havia pescado algo, o raio de luz se transformou, em uma bolha de luz transparente, penetrou no solo e subiu lentamente trazendo algo consigo. Uma pilha de ossos! Tão logo foi colocada no chão, os ossos ganharam vida e começaram a se encaixar uns nos outros e da forma a um esqueleto humano, o crânio flutuou primeiro, rodopiando no ar, seguido pelos ossos das vertebras, os braços subiram, as armações das costelas e ossos da bacia, os ossos das pernas começaram a apoiar o cadáver até que por fim, os pês se formaram de pequenos fragmentos ósseos.
__Corpo seco! Você espancou muitas vezes sua mãe em vida por isso a terra se recusa a digerir seus ossos! Sendo vomitado do ventre da terra em vários cemitérios da região.
__Sei muito bem, qual é o meu crime, pois minha alma serve de montaria para as bestas do inferno, já que em vida eu agredia minha mãe e a fazia passar por burro de carga obrigando-a a me carregar munida de cangalha enquanto recebia chicotadas nas costas. Então porque perturba o meu tormento, fazendo-me animar essa carcaça mais uma vez?
O anjo falou sem rodeios.
__Na verdade os três foram convocados para uma missão, apesar de terem cometido pecados graves, vocês irão ter uma chance de redenção. Um mal muito maior que vocês, irar querer entrar nessa cidade e nós não vamos deixar.
__Nos vamos enfrentar um demônio? O corpo cerco falou pela primeira vez.
__Isso mesmo. E caso vocês vençam vão ganhar o perdão de Deus.
__E se formos pegos? Indagou o lobo.
__Vão direto pro inferno ou terão sua essência diluída no cosmo.
__Mas a gente já não vive no inferno? indagou o corpo seco.
__Como ousa? você se atreve a ironias nesse caso, acredite existe coisas bem piores do que vocês passam aqui, pelo menos ainda transitam no plano material, mas quem já atravessou o limiar dos portões do inferno, para estes já não existe mais esperança.
E quando começamos a lutar? Perguntou a velha.
A coisa não é tão simples. Eu quero que andem por ai, investiguem durante as noites de festejo que ainda faltam antes do dia da procissão, quero que observem vivos e mortos, A cidade também está agitada no plano espiritual, para isso vou soprar sobre vocês um pouco da minha aura mais cuidado, a vaidade humana também irá tentar vocês.
Os três começaram a olhar apreensivos para o céu, a barra do dia começava a surgir no horizonte tornando opaco o brilho das estrelas da constelação de Órion e do cruzeiro do sul, dali avistaram os primeiro sinais de movimento da feira no mercado da cidade com os magarefes afiando facas e fatiando carnes que ao raiar do dia começariam a serem vendidas aos seus fregueses habituais.
__Não se preocupem, estendi uma membrana espiritual sobre vocês, hoje foi a primeira noite de uma nova vida de vocês, o jogo começou a virar.
Os primeiros feirantes da feira dos bichos começaram a chegar e passaram por eles como se fosse invisíveis, caminhões vindos do interior estacionaram nas laterais da rua, descarregando pessoas que vinham fazer a feira e animais que seriam vendidos ali.
__Viu? eu não disse? Fiquem tranquilos e voltem pra casa, a muito a ser feito, mas por enquanto vamos ser discretos.
O lobisomem e a porca começaram a voltar pra casa como se fossem humanos normais.
__E eu? como fica minha situação?
__Não lhe avisei? Você vai ganhar outro corpo. Vê se não faz besteira dessa vez.
__Sim senhor.
O sol começou a raiar, na direção da cidade de campo-maior, ao longe era possível ouvir o ultimo cantar do galo daquela movimentada madrugada.
Três dias e três noites se passaram sem incidentes e o festejo se encaminhava para o seu final. Corpo seco, agora disfarçado de um humano comum perambula entre as bancas de caipiras e barracas que vendiam bebidas, localizadas nas ruas próximas a matriz e que ajudavam a movimentar a economia da cidade durante a festa do santo. Foi só quando se aproximou da barraca do leilão que lembrou das palavras do anjo sobre as tentações da carne e as vaidades humanas que estariam sempre à espreita e que poderia colocar em risco a missão. Algumas memorias humanas voltaram e ele tremeu ao ver uma mulher em uma das mesas, tomando cerveja com um homem que possivelmente era seu marido, ela trajava um vestido vermelho e usava um salto alto, o cabelo loiro caia ao redor das maças do rosto, realçando as feições da face, quando ela sorria.
Ele lembrou como um dia já tinha sido um menino puro de interior, apaixonado por aquela menina com corpo de mulher, quando saiam juntos do terreiro da casa e se embrenhavam na mata até alcançarem as margens do rio surubim. Mas isso foi a muito tempo atrás, antes dele aprender a beber e começar a revidar as surras de chiqueirador que recebia de sua mãe, ele tinha crescido revoltado com isso.
Deu as costas pro seu passado, não adiantava aparecer agora, estava empenhado por enquanto em salvar sua alma, saiu dali e recomeçou a ronda espiritual caminhando na direção do parque de diversões. Na barraca a mulher ficou com a sensação de estar sendo observada, enquanto o marido ingeria mais um copo, ela olhou esquadrinhando a multidão, procurando por algo, mas não sabia muito bem o que era.
__O que foi querida? Viu alguém conhecido?
__Não, nada, respondeu lacônica.
__vem vamos tirar uma self.Tirou o android do bolso e ajustou a câmera do aparelho para capturar a imagem do rosto dos dois. Ela pousou sorrindo, mas o sorriso parecia meio triste.
Ele procurou um bairro bem longe do seu. Agora era só localizar um ponto de encruzilhada entre ruas, com espojeiro de animais. Estava muito longe do centro da cidade, num trecho sem rede elétrica, estrada carroçal, com buracos de erosão deixados pela chuva e capins cobrindo o pé de cerca de arame. O sinal foi dado, tinha chegado a hora de lutar, sabia porque tinha sido escolhido. Foi a coisa mais improvável que aconteceu, um lobisomem escolhido por um anjo, depois que sua alma já ter si perdido.
Até que enfim encontrou o lugar certo, a areia estava remexida e fofa com vestígios de pelo e fezes de animais. Deitou-se no chão, rolou três vezes para frente e para trás, as orelhas ficaram pontudas, as unhas dos pés e das mãos cresceram, virando garras pontiagudas, os músculos do corpo inflaram e se retesaram por baixo do tecido, as roupas cederam, a camisa branca rompeu-se nas costas, a calça jeans se despedaçou, a besta ergueu a cabeça na direção da lua cheia que adornava a abobada celeste, abriu a boca e soltou um uivo, saiu correndo para lutar. Ele recebeu instruções espirituais do anjo, correu até alcançar a BR-343, fazendo pouco caso da perseguição dos cachorros, em outros tempos teria estraçalhado vários deles. Correu na luz da lua, fazendo ziguezague entre caminhões, ultrapassando de maneira perigosa e assustando motoristas que se aventuravam pela BR, insistindo em virar a noite no volante.
Ele seria a primeira defesa espiritual da cidade de altos naquela noite e impelido por uma força espiritual fora do comum fez a corrida terminar tão rápido como começou, estava na curva da raposa agora, um trecho macabro, travessia perigosa marcada por acidentes fatais e assombrações. Esbarrou, apoiado sob as patas mutantes e encarou o adversário que trotava sob o cavalo preto na direção da cidade de altos. Ele afrontou primeiro:
__eu não entendo, você poderia se materializar dentro da cidade.
__Digamos que sou um invasor a moda antiga, sempre invadir cidades assim, sozinho ou liderando exércitos, dessa vez não ia ser diferente. O cavaleiro guiou o cavalo calmamente para o acostamento esquerdo, seguido pelo lobo. Agora foi a vez dele provocar.
__eu é que não entendo porque Gabriel não me enfrenta de vez, fica mandando capachos que nem você, não percebe que está sendo usado por ele?
__aceito minha condição, já errei muito nessa vida.
__Patético!
__Vamos lutar ou vamos ficar nesse lengalenga a noite toda?
Quando duas entidades espirituais se enfrentam no plano material, sempre surge uma cortina espiritual que camufla a luta de eventuais espectadores humanos, por isso os veículos iriam passar ao largo daquela luta, o único testemunho seria o leito do rio surubim que margeava aquele trecho de BR. O LOBO saltou no ar, dando o bote com garras e presas, o cavaleiro achou estranho, parecia que o lobo iria errar o alvo, só percebeu a intenção do bicho quando já era tarde demais cavalo relinchou de dor por trás da máscara de ferro, quando sua garganta foi cortada, um jato de sangue lambuzou a cara do lobisomem e tingiu o asfalto negro de vermelho, o cavalo caiu para o lado, derrubando o cavaleiro e deixando –o com a perna presa, o lobo aproveitou para investir de novo e liquidar logo o combate, mas mesmo deitado o pistoleiro sacou uma pistola por baixo da jaqueta de couro e disparou, o que fez o bicho recuar, sem ângulo, o pistoleiro atirou sem pensar, sem fazer mira, não acertou o alvo em cheio apesar da proximidade, mas conseguiu afugentar o bicho,precisava de tempo para liberar a perna que ficou por baixo do cavalo, continuou disparando e o lobisomem correu, atravessando a pista, deixando um rastro de sangue no asfalto, estava ferido, a bala tinha passado de raspão na altura do ombro, arrancando tufos de cabelo, deixando a mostra carne viva, se fosse um projetil comum, a couraça do lobisomem nada teria sofrido, mas o pistoleiro do inferno sempre usava projeteis de prata, com minúsculos símbolos esotéricos gravados em baixo relevo na extremidade, o que poderia causar danos adicionais.
__Pode correr, mas não pode se esconder para sempre. Disse com a arma engatilhada mais uma vez.
Quando atravessou a estrada seguindo o rastro de sangue deparou-se com a estrutura de um antiga fazenda, agora abandonada, divisou a casa grande, os currais e uma casa de forno. Tinha perdido o rastro de sangue e ficou indeciso se investigaria a área externa ou as dependências daquela tapera gigante, optou pela segunda opção, foi no entrar da porta que lembrou daquilo que o pescador tinha dito. “Fazenda poço dos negros”. O local poderia estar infestado de espíritos de escravos atormentados. Droga! Eles podem atrapalhar. Mesmo assim resolveu avançar, verificando, cômodo por cômodo, olhou a sala ampla, as paredes de adobo com imagens de santos corroídos pelo tempo, o cimento que cobria o piso estava cheio de rachaduras, de onde brotava tufos de mato, o telhado era comprometido com infestações de cupim devorando pouco a pouco as vigas de madeira feitas de carnaúba que davam sustentação ao telhado, a luz da lua transformava o telhado em uma grande peneira tamanha era a quantidade de telhas quebradas, cujos cacos se espalhavam pelo piso da tapera toda. Depois de passar pela varanda e pela grande sala, iniciou a travessia do corredor, verificando quarto por quarto, a tocha em uma das mãos e a pistola engatilhada na outra, na maioria dos quartos a ferrugem tinha corroído as dobradiças das portas, fazendo com que caíssem, favorecendo a ação dos cupins, outras que resistiam ainda bravamente ao tempo estavam escoradas nas paredes e somando-se isso ao fato de lixo humano estar espalhado pela casa toda, era possível deduzir que o local era frequentado por marginais para consumo de drogas, encontros amorosos e como latrina.
Foi só quando chegou na metade do corredor e que se tornou audível um gemido, um lamento de dor e pecado que parecia emanar do mundo das trevas e o portal era o fundo da cozinha. Quando alcançou o ponto de origem daquele som medonho, observou que a parede dos fundos que servia de apoio para o grande fogão de lenha havia ruído e desabado juntamente com uma parte do teto, esmagando o fogão feito de barro, inutilizando as bocas do fogareiro, reduzindo aquele trecho da cozinha a um amontoado de barro, pedaços de telhas e ripas quebradas com pés de ortiga que brotavam naquele monte de refugo. Era dali que vinha o gemido, e tudo não passava de uma armadilha.
__ Te peguei, desgraçado! ele chutou uma tabua que aparentemente encobria uma passagem para um refúgio no monte de entulho, ele pensou ter encurralado o lobo ali. Mas o que surgiu foi uma coisa peluda, de boca aberta pronta para devora-lo, pego de surpresa se esquivou inclinando o corpo para trás, tentando escapar do bote ao mesmo tempo que tentava sacar a arma e disparar. Era a porca que atacava e só não conseguiu uma investida direta porque seu adversário também era rápido, num gesto brusco, desviou a cabeça da mordida, mas uma das patas do bicho acertou o punho que segurava a arma que disparou e caiu da mão do pistoleiro,deslisando pelo piso do corredor.Nisso a porca achou que tinha uma chance melhor e investiu outra vez com a única arma que tinha, a boca cheia de presas afiadas, mas num gesto instintivo o pistoleiro improvisou uma lança com a vara da tocha e estocou o bicho na garganta aproveitando a bocarra aberta. A porca soltou um uivo de dor, desistiu do combate e saiu correndo pelo corredor da casa, até alcançar o terreiro da fazenda e o asfalto, correndo de volta pra cidade de altos, ela estava fora de combate.
__Pode correr, depois eu me acerto com voçe.Disse, procurando a arma no chão. __Por enquanto minha prioridade é outra. Ia recomeçar a caça, quando sentiu algo gotejando em seu ombro e alguma coisa lhe dizia que não era agua.
__Eu caio? Foi surpreendido por uma voz que vinha do alto.
__Pode cair maldito! Ele rosnou, apareça e venha me enfrentar!  
A coisa caiu bem na sua frente, mas não caiu compacta, primeiro caiu uma posta, não dava para considerar como liquida, era pastosa e viscoso, depois começaram a cair membros humanos, pedaços de pele carne e ossos. Em na sua frente a coisa começou a se recompor e tomar forma humana, foi emergindo do chão.
__você não mete medo em mim! ele apontou o cano da arma.
__Droga! eu ganhei esse corpo agora.
O tiro acertou o corpo-seco em cheio, lançando-o para trás. Era quase meia-noite.
Aquilo não passou de uma distração dolorosa, ao se concentrar em quem estava a sua frente o pistoleiro deixou o flanco exposto, o lobisomem entrou por um buraco na parede e investiu contra ele como um touro, se chocaram contra a parede oposta que não suportou o impacto e cedeu, caíram no quintal próximo à casa de forno. Apesar da investida o lobo começava a ficar lento por causa do tiro com bala de prata benzida que levara, o pistoleiro tinha deixado a arma cair mais uma vez, mas nos olhos do lobo a fúria começava a dar lugar ao medo, uma emoção tipicamente humana.
De repente ele viu uma lamina de prata reluzir no ar, na mão do seu carrasco e descer contra seu corpo, o carrasco golpeou várias vezes, arrancando couro cabeludo e fazendo o sangue jorrar no biso de barro batido da casa de forno, sob a luz da lua aquele corpo tremeluzia, ora parecia um corpo de lobo, ora de um homem, ele estava sendo derrotado, até que enfim os golpes sessaram, mas sentiu-se arrastado como um porco até a prensa de farinha, o osso de seu braço quebrou quando a pesada  peça de madeira do mecanismo desceu, em um último esforço ele deu uma patada no pistoleiro, lançando-o contra o forno de torrar massa, fazendo a parede de barro do forno ceder. Quando o adversário tentava se levantar foi atingido por outra porrada que o fez atravessar a outra parede do forno e sair rolando, até parar junto a parede de um poço, o poço dos negros! Foi corpo-seco que o tinha atingido com uma pesada tora de madeira usada para lavagem da massa de mandioca, golpeou como se tivesse usando um tacape, ele liberou o braço do parceiro de luta, que estava fraco demais para se soltar sozinho.
__O que você está fazendo aqui?
__Salvando a sua pele, não dá pra vê?
__ Nem sei se ainda tenho pele!
__Vem vamos acabar logo com isso.
__Você também está ferido!
__Isso é o que dá ganhar um corpo novo.
Lá fora tinha começado a chover e de braços abertos, iluminado pelos clarões dos relâmpagos alguém gritava:
__Venham! Venham me enfrentar! Tragam aquela porca imunda também.
Algo improvável aconteceu, era a primeira vez que um lobo lutava como um ser humano, ele conseguiu ficar de pé, como se fosse a primeira vez que dava a volta por cima, mesmo no calor da batalha, sentia-se estranho, por se sentir já vitorioso, apesar da sua cabeleira ser de lobo, seus membros eram humanos, apesar de peludo, embora tivesse ferido, experimentava uma determinação que só um ser humano de verdade conseguiria sentir, algo que nunca sentira antes, quando era movido pela maldição. Corpo seco perdia sangue cada vez que tossia, ficava fraco a cada segundo que passava, começou a sentir saudades do tempo que não sangrava.
__Vocês são patéticos, como pensam que vão me derrotar?
Essa noite tudo acaba, pensou o homem lobo, queria recuperar sua dignidade de volta, Avançou com a fúria primitiva de um homem das cavernas apesar de ter um dos braços quebrados. Tentou soltar um jebe com o braço que estava intacto, mas o pistoleiro não fez caso disso e recebeu o oponente com uma avalanche de socos no estomago e nas costelas, depois o ergueu no ar, subiu na parede do poço para joga-lo no fundo, lá embaixo as pontas de ferro, fincadas firmemente no fundo lamacento do poço se iluminavam com a luz dos relâmpagos e o som do trovão era o som da batalha.
Nisso o pistoleiro sentiu uma fisgada na perna, quando olhou não acreditou no que viu.
__Você?
Uma boca de porca sangrenta e espumante mostrava suas presas mais uma vez. Ele deu um safanão com a mesma perna que estava sendo atacada e ela foi atirada longe sem forças para lutar, nurica estava morrendo mas tinha gerado distração suficiente para corpo-seco avançar e se jogar contra o corpo do outro.
__Você vem comigo! E os dois caíram agarrados no fundo do poço, sob os espetos, o homem lobo conseguiu se agarrar na parede do poço com uma mão e ao olhar para baixo soltou um lamento pelo amigo recente.
__Nãaooo! A voz de fera denunciava sensibilidade humana.
Lá no fundo do poço tentáculos de energia negra emergiram entre os espetos e puxaram o corpo do pistoleiro para o inferno, enquanto uma voz rugia:
__Seu tempo acabou!
__Não! Não! Já estava tão perto. Não!!! E foi engolfado pelas trevas.
Os espíritos dos escravos mortos na fazenda, apareceram e tiraram o corpo-seco dos espetos, fazendo-o flutuar no ar, até chegar na borda, para ser pego pelo homem lobo. Quando foi colocado no chão, o anjo apareceu colocando a mão no ombro do homem-lobo que de joelhos consolava o moribundo. Corpo seco fez um esforço tremendo para falar.
__Não deixe a terra me vomitar de novo, eu quero um enterro digno dessa vez.
__Não se preocupe, você será velado como uma pessoa normal.
O homem lobo foi buscar o corpo humano de nurica que ainda arfava e colocou perto do corpo seco.
__Eu também tenho um pedido a fazer.
__O que a senhora quiser. Disse o anjo com olhar piedoso e um pequeno sorriso.
__Ja que eu não morri ainda, eu quero morrer na minha casa, pelo menos isso.
__Assim será feito. Disse o anjo.
__E quanto a mim, o que irá acontecer? Perguntou a fera com lagrimas nos olhos.
__Você foi tocado por uma adaga do inferno, além disso cometeu muitos pecados, ira ficar com essa forma atual, será chamado de capelobo, metade homem, metade lobo e ira viver nas florestas ao redor da cidade, será temido pelos caçadores, mas não fara mal a ninguém, É tudo que posso fazer por você, até que sua nova existência chegue ao fim, essa será sua penitencia.
__Me parece justo. Disse o capelobo, encarando a mata e a serra que se estendia logo depois dos fundos da fazenda.
__Me diga só mais uma coisa, antes da minha partida, quem era aquele que enfrentamos? Disse meio sem graça, coçando a cabeça.
__Ele já foi um capataz, um torturador nessa fazenda a muito tempo atrás, muitos escravos sucumbiram com sua tortura, quando morreu sua alma foi pro inferno, e lá por causa de sua índole violenta foi promovido a pistoleiro do inferno, podendo vagar nesse mundo de tempos em tempos para buscar outras almas que tenham feito pactos com demônios ou que tenham pecado demais.
__E quem ele queria?
__A alma de vocês três!
Depois que o capelobo, foi embora o anjo manipulou a mente de um motorista que passava pela BR para prestar socorro a duas pessoas do campo, tudo indicava que tinham sofrido um acidente na pista, eles entraram na cidade de altos. Corpo seco já estava morto, foi enterrado no fim do dia, no cemitério do centro da cidade, o ventre da terra não rejeitou seu corpo dessa vez.
Nurica agonizava no leito em sua casa, rodeada por alguns vizinhos e membros do apostolado, quando o padre entrou em sua casa, indo direto para o quarto.
__Eu sabia que o senhor viria.Disse, com dificuldade, pois a garganta estava inflamada e cheia de pus, com lascas de madeira que não conseguiram tirar.
__E como a senhora soube disso? Perguntou o padre, tentando ser complacente, sentado do lado da cabeceira da cama.
__ Digamos que um anjo me contou. Nurica forçou um sorriso. O olhar dos dois se encontraram com certa cumplicidade, havia segredo entre os dois.
__Tenho algo para voçe.Disse o padre colocando a mão no bolso e tirando de lá uma fita vermelha com escapulário.
__Eu me enganei sobre você, a senhora sempre foi digna de usar isso.
Ela recebeu a fita e ajudaram a colocar no pescoço por cima da farda azul do grupo a qual ela pertencia.
__Não padre, nem sempre fui digna, mas acho que recuperei minha dignidade.
Ela recebeu a extremunção, comungou e depois partiu, em paz.
                                                            FIM










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